Essa é uma breve lembrança do que ficou de minha formação, com certeza não tão fiel à história – são apenas lembranças.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

“Vamos bordando a nossa vida sem conhecer por inteiro o risco; representamos o nosso papel sem conhecer por inteiro a peça. De vez em quando, voltamos a olhar para o bordado já feito e sob ele desvendamos o risco desconhecido; ou para as cenas já representadas, e lemos o texto antes ignorado. E é então que se pode escrever – como agora faço- a “história”. (Magda Soares – Metamemória-Memórias)

1. O começo de tudo

Quando nasci

Um anjo lindo

Desses que vivem na Luz disse:

“Vai, Aurizete, levar a Luz da educação aos caminhos na vida”

Parodiando Drummond. É assim que inicio este relato.

Nasci em Ibirataia, cidadezinha do sul da Bahia, em 10 de novembro de 1967, ao “meio-dia claro de luz”. Meu choro se confundiu com os sons de festa das pessoas e das fanfarras que comemoravam o sétimo ano de emancipação política da cidade. Primeira filha de um casal recém-casado, as emoções, é claro, eram da chegada de um primeiro filho.

Volto no tempo e ouço, enquanto menina, meus pais comentarem: “Antes de qualquer herança material, deixaremos para nossos filhos Educação”. Evangélicos convictos, sempre se preocupavam em nos oferecer, a mim e a meus irmãos, escolas e professores que ensinassem os bons costumes e preservassem os valores morais essenciais para nossa formação.

Como era comum em famílias de classe média e ajustada, estudamos, eu e meus irmãos em escolas públicas até o Ensino Médio (2º Grau). A pré-escola, fiz em Penedo, Alagoas, para onde meu pai, gerente de banco, foi transferido em 1972. Entre as névoas das lembranças, uma imagem é forte desse período: minha professora alfabetizadora, “Tia Lúcia”. Alta ( talvez pelo olhar pequeno), loira e bonita. Imprimiu em mim o primeiro amor pelas letras. A cartilha “O Barquinho Amarelo”, ainda cheira nas minhas narinas e Rosinha, uma das personagens do livro, ainda brinca, nas minhas lembranças, com o barquinho amarelo. Já adulta, tive um reencontro com um volume velho, amarelado e surrado desse livro encantado num sebo e o guardo até hoje. Outra lembrança viva dessa época é dos “passeios” à feira com minha mãe, que era a garantia de ser presenteada com revistinhas em quadrinhos, minha paixão na época.

Voltamos para Ibirataia. Fui matriculada na primeira série da escola Eugênio Machado, no centro da cidade. Minha mãe confeccionou meu uniforme zelosamente: calça de tergal azul marinho, blusa branca e “conga”, um tênis muito usado na época. Era 1974, o ano letivo já havia começado e isso se transformou em motivo de muita apreensão para mim. Ambiente estranho, pessoas desconhecidas, um mundo que ainda não era meu. Estava com bastante expectativa em relação ao que ia encontrar. Aí vieram as decepções. Minha sala era no subsolo. A escada descia para uma sala sem colorido ou iluminação e parecia ter bem mais degraus do que tem hoje. Aos poucos, o encantamento se transformou em angústia, em tristeza. Aquela não era a minha escola. Aquela não era a minha sala. Não me sentia feliz ali e as verdadeiras razões ou causas não estão vivas no meu consciente hoje. Muito rápido fui sentindo um grande isolamento e passei a chorar todos os dias ao sair para a escola e durante o período que passava lá. Voltava para casa triste e amargurada. Até hoje essas lembranças me trazem estremecimentos, sem saber ao certo o que me fez sentir assim. Contei então com a sensibilidade de meus pais que logo me transferiram para outra escola.

A escola era Manoel de Souza Massaranduba. E lá estudaria por dois anos, importantíssimos para o alicerce que estava sendo construído na minha vida acadêmica. Na terceira série, em 1976, fui transferida novamente para a escola José Firmino da Silva, por ficar mais perto de casa e por ser o mesmo local de trabalho de minha mãe, que também era professora. Tinha 8 anos e a mudança me fez muito feliz. Lá minha mãe lecionava e eu me sentia segura, protegida, apesar de ser muito cobrada no bom comportamento por isso, afinal, filha de professora tinha que ser sempre exemplo. Nas instalações dessa escola funcionavam duas unidades de ensino: o ensino primário, no qual eu estudava a terceira série e à tarde funcionava o Colégio Municipal de 5ª série ao 2º grau, para o qual era sonho de todo aluno ser emancipado.

Foi aí que tudo aconteceu. Tive um encontro amoroso com a profissão de educador. Diariamente observava minha mãe em suas responsabilidades de professor corrigindo cadernos (ainda se levava cadernos de alunos para casa), trabalhos e provas. Essa rotina me encantava, me atraía. Nesse mesmo período, meu pai passou a ajudar ao município servindo como presidente do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização de Adultos) cujo núcleo funcionava vizinho à casa onde morávamos. Passei a ajudar com freqüência os alunos quase idosos naquelas aulas noturnas. Auxiliava nas tarefas de leitura e escrita fantasiando que eu era a professora. Fui selada por uma grande paixão pela educação naquele momento especial. Além disso, nas duas séries consecutivas que cursaria, tive duas professoras amantes da profissão: Profª Celeste Barbosa e Profª Marisete Cersosimo. Delas, eu lembro o cheiro, o tom de voz, as repreensões cuidadosas, os gestos delicados e a caligrafia, a qual imitava. Minha relação com elas era de amor filial e devotava a elas respeito e submissão. Eu era uma menina estudiosa que se sentava sempre na carteira da frente e aspirava com toda a alma se tornar uma professora.

2. A semente

Foram muitas as influências para que se manifestasse ainda tão nova esse desejo. Desde muito pequena ouvia comentários de como eram admiradas as moças que se tornavam professoras. Eram sempre pessoas de fino trato, estudiosas, educadas, falavam e escreviam bem e, o mais importante, eram muito respeitadas. Minha vida, então, aos poucos estava sendo traçada para cumprir um grande objetivo: concluir os estudos e garantir um futuro. Isso foi bem impresso na minha mente. Meu pai tinha como objetivo para os filhos que estes se dedicassem aos estudos, se formassem, para só então casar. Essa filosofia acompanhou a mim e a meus irmãos por toda vida.

Em 1978, aos 10 anos, ingressei finalmente no Colégio. O fardamento novo incluía tênis e calça jeans, coisas que ainda não conhecia. Usá-los foi tão emocionante quanto o primeiro sutiã. Ao contrário de uma única professora, passei ater vários professores diferentes por disciplina. Foi maravilhoso. Adaptei-me com facilidade ao novo sistema escolar e mais uma vez meu bom desempenho nos estudos se manifestava. Classificava-me sempre entre os melhores da classe. Nesse período tive a experiência que ia direcionar toda minha trajetória: eu, que já amava ler gibis e fábulas, fui apresentada ao mundo da literatura. Lembro-me com saudade de Profª “Gracinha”, que nos pôs a ler as mais maravilhosas histórias do universo brasileiro. Favoreceu muito a nova paixão o fato de eu ter sido criada em meio a livros, enciclopédias e pais leitores. Frequentemente, quando chegavam vendedores de livros ma escola, com campanhas de venda de bilhetes para aquisição deles, meu pai comprava todos para que eu pudesse adquiri-los sem precisar ir à rua. Sempre foi assim.

Nos anos seguintes foi se concretizando minha transformação. Eu era uma aspirante, eu era alguém com sonhos e metas, mesmo que frágeis para uma menina de 10 anos e tão passíveis a novas direções. Tive muita atenção dos professores. Primeiro, por ser uma aluna interessada, segundo, pela amizade que nutriam por minha mãe, que a essa altura já era vice-diretora do colégio, posição que ocupou durante muitos anos. Houve um grande investimento em mim e eu me esforçava para corresponder sendo aplicada nos estudos e amando e respeitando meus professores.

Em 1981 nossa cidade ganhou um novo colégio. Construção nova, instalações modernas, grande, lindo. Absorveu todo o alunado das duas escolas que antes existiam e lá fui matriculada para fazer a 8ª série. Lembro-me o quanto foi mágica a mudança para aquele lugar cheirando a tinta, com duas grandes quadras esportivas e muita, muita área para conviver e criar laços. Esses foram muitos. Desse período resultaram as grandes amizades que nutro até hoje, inclusive de colegas de trabalho. Tudo parecia belo se não fosse a falta de professores de Português, problema que ia durar por algum tempo. Passávamos todo o ano sem aulas e no final da quarta unidade “importava-se” algum professor de cidades vizinhas para fazer atividades e constar notas. Essa situação perdurou por uns três anos e quando penso nessa fase me conscientizo da lacuna que existe no meu aprendizado. Teria sido essa fase, a ideal para o conhecimento de teoria literária e Literatura Brasileira, o que não aconteceu. Penso no quanto perdi, no quanto deixei de aprender no tempo ideal que só foi recuperado alguns anos depois no curso de Letras.

3. De discente a docente

Ingressei no 2º Grau e era 1982. Já tinha definido meu objetivo, queria ser professora. Não mais de forma fantasiosa e infantil, mas por amor, vocação, aptidão. Sonhava com isso e para isso eu estudava. O segundo e terceiro anos de Magistério foram felizes. Eu amava o curso, estudava os fundamentos teóricos, mas amava mesmo as aulas práticas. A cada dia me evidenciava como uma das ótimas alunas; tinha letra bonita, escrevia no quadro “sem descer ladeira”, era aplicada e organizada. Adorava cadernos, lápis e canetas coloridas (como até hoje). Preparar os “planinhos” de aula prática era uma delícia. Dar essas aulas, então, era um prazer, mesmo com a exigência da coordenadora do curso. Tive ótimos professores no curso de Magistério, apaixonados, comprometidos com a profissão, e exigentes, muito exigentes. A lembrança da coordenadora Profª Maria Emília Brito exigindo a perfeição, o que na época me trazia tristeza e angústia, hoje me traz alegria por ter sido assim, e sensação de dever cumprido. Essa cobrança exigiu de mim o melhor e se reflete até hoje no meu fazer pedagógico. Professora Emília... Rígida, dura, cobradora. As regras impostas por ela nos tornavam melhores. A exigência nas leituras, na postura, no trato, nos cadernos lindos e enfeitados, como nos preparou! Quantas páginas arrancadas de nossos cadernos decorados, sem pedir licença, por ela achar que os planejamentos não estavam bons!

O estágio chegou, finalmente. Era final de 1984 e foi para mim um sonho. Afinal, era “dona” de uma sala de aula, pelo menos por algum tempo. Eu era observada e avaliada todo o tempo e contei como professora-regente uma grande pessoa, Profª “Nau” (Ana Lúcia dos Anjos), que foi amiga, orientadora, aconselhadora e parceira. Não intimidou em nenhum momento e isso me ajudou verdadeiramente. Naqueles quase sessenta dias que passei ali se consolidou a vocação de professora no meu coração. Nasci para aquilo. Foi muito bom ter essa certeza que me indicou o caminho.

4. A paixão

Concluindo a “formatura”, aventurei-me no primeiro vestibular com incentivo de meus pais. Lembro-me do temor que tinham por eu ter que ir morar fora, pois a Faculdade de Letras mais próxima ficava em Itabuna, a 130 quilômetros. A simultânea aprovação no vestibular de duas primas e uma amiga colaborou muito, pois uma “república das professorinhas” foi criada em Itabuna. Eu era uma menina de 17 anos numa cidade “grande”. No início foi puro sofrimento. Longe da família e de um primeiro amor, chorava quase todos os dias. Foram muitas as vezes que pensei em abandonar do curso, mas aos poucos a Literatura foi me hipnotizando, a família apoiando e resolvi aprofundar-me no curso. Foi se descortinando para mim um novo mundo de conhecimento: Saussure, Massaud Moisés, Orlando Pires, as línguas “desconhecidas” Inglês e Latim . Fui apresentada ao magnífico Fernando Pessoa por Profª Tica (Maria de Lourdes Netto Simões). Paixão à primeira vista. Vieram novas paixões como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Mário Quintana, Machado de Assis, Graciliano Ramos , Guimarães Rosa. Quando estava “casada” com um deles, mantinha os outros como “amantes”. Isso perdura até hoje. Foram encontros de amor eterno com a arte literária.

Os quatro anos que passei em Itabuna só favoreceram minha formação e possibilitou a ampliação e a diversificação de minhas leituras e do meu conhecimento. Ingressei num curso particular de Inglês e participei de encontros e congressos oferecidos pela faculdade. Foi maravilhoso. Eu queria crescer, estudar, ser uma professora competente. Tive excelentes professores de Português como Rui Póvoas e Margarida Fahel, o que sanou em parte a deficiência que tinha da época ginasial. Por eles fui influenciada a tomar novamente uma grande decisão que, mais uma vez, nortearia minha vida acadêmica. Tracei um novo objetivo: me especializar em Literatura, o que aconteceria dois anos mais tarde, quando ingressei no curso de Especialização em Literatura Brasileira na PUC – BH. Foram dois anos maravilhosos para mim. Lá tive contato com grandes professores e autores como Audemaro Taranto Goulart, Luiz Percival de Brito, Reinaldo Marques, Zenir Campos Reis, Johnny José Mafra, Vera Lúcia Felício Pereira que possibilitaram meu aprofundamento no conhecimento da Literatura, da vida e obra de grandes autores.

Nessa mesma época prestei dois concursos para o Governo do Estado e iniciei minha trajetória no campo do magistério.. Em 2002 surgiu a oportunidade de participar como professora fundadora do Colégio Cristão Betânia- Educação por Princípios, onde fiquei por 8 anos. Há 18 anos trabalho no Ensino Médio como professora de Português, Literatura e Redação. No momento, me dedico à clientela do turno noturno, por ser grande o desafio. O que seria da vida sem desafios?

5. Educação e desafios

Atualmente trabalho no Colégio Estadual Antonio Carlos Magalhães. Surgem desafios todos os dias e o maior deles é fazer surgir a cultura da leitura e do estudo entre nossos alunos que, em sua maioria, não almejam sequer um vestibular. Ocupo-me todos os dias em ser para eles uma professora apaixonada pelo que faz, pela leitura e pelo conhecimento. Espero a cada dia ser um referencial de mudança de comportamento. Hoje, depois de uma árdua, mas gratificante caminhada, prossigo para o alvo que é encerrar minha carreira atualizada, revigorada. Esse é a razão de estar fazendo mais uma especialização.

Enquanto termino essa narrativa, penso no quanto minhas escolhas me impulsionaram para essa profissão. Não sei de ato meu que não fosse praticado em função do desejo de ser professora, de trabalhar com o conhecimento. Tenho irmãos médicos, farmacêuticos, administradores e penso que nenhuma profissão é mais sublime que a do professor, por cujas mãos passam todos os demais profissionais e através de quem todo ser humano se torna cidadão, ao aprender a ler e escrever. Espero viver para testemunhar a valorização e o respeito por parte de todos a essa profissão.

Essa é uma breve lembrança do que ficou de minha formação, com certeza não tão fiel à história – são apenas lembranças.